março 19, 2010

Crónica Semanal de Leonor Pinhão

In ABola

Diabólica, é a ponta ou é a época?

Falar torna-se, às vezes, muito complicado. Principalmente quando se fala pouco é muito difícil fazermo-nos entender. A culpa é dos eloquentes, que são os que falam muito e, embalados pelo som da sua própria voz, dizem a mesma coisa uma dúzia de vezes, sem vírgulas, sem pontos finais. Para sofrer a experiência basta assistir a programas de televisão cujo assunto em debate seja, por exemplo, o futebol.

Qualquer interveniente que comece por dizer «vou ser muito rápido» demora-se, pelo menos, dois minutos a explicar porque é que vai ser muito rápido, mais dois minutos a perder-se em considerações que não vêm para o caso e outros seis, sete minutos a formular por palavras a sua ideia inevitavelmente muito geral. E com tantas explicações e redundâncias é óbvio que, no fim, os telespectadores dando-se por vencidos, por exaustão, conseguem juntar os pedacinhos todos do muito que ouviram e armar, pelo menos, uma frase que faça algum, ainda que pouco, sentido.


Assim sendo, as pessoas desabituaram-se de apreciar os lacónicos. E, sobretudo, desabituaram-se de os perceber. Ouvir falar os outros tornou-se numa espécie de passatempo sem que o móbil seja o da compreensão. E quanto mais falam mais passa o tempo, sucesso garantido. É caso para se dizer que, nesta altura do campeonato, as frases curtas e o poder de síntese estão condenados ao desdém, à obtusidade e à maledicência, como alguns fenómenos recentes bem o explicam.

Comecemos por Jesus, por definição um incompreendido. Ainda hoje, um incompreendido.

No fim do jogo no Funchal, contra o Nacional, Jesus disse:

— Estamos a fazer uma ponta final de época diabólica!

E sobre este tema não disse mais nada. Deixou-o assim, curto e palpitante, como palpitantes eram os peixes nas redes de Pedro. Logo vieram os fariseus, habituados aos seus próprios longos e insignificantes discursos, desdenhar as palavras do treinador do Benfica, acusando-o de ser um convencido, um vaidoso, porque não entenderam a simplicidade da mensagem.

É que Jesus não disse:

— Estamos a fazer uma diabólica ponta final de época!

E se o dissesse, estaria, pois evidente e desnecessariamente, a elogiar a sua equipa e a elogiar-se a si mesmo, considerando como «diabólica» a «ponta» e não o «final de época» que, esse sim, é mesmo muito puxado como Jesus quis dizer e disse, colocando o adjectivo «diabólico», humildemente a preceito, no final da frase.

No futebol falado as regras são todas ao contrário. Há uma altercação táctica permanente entre formas e conteúdos, sem que nenhum dos campos se consiga impor porque os abusos de interpretação são sempre adulterados por factores exteriores à formulação. E quanto mais curta é a formulação da frase, maiores são os abusos e menor é o entendimento.

Tomemos outro exemplo da semana. O exemplo de Deco. O jogador foi entrevistado no Brasil pela TV Globo e disse:

— Eu não sou português.

É uma grande verdade.

Mas, no lugar de ser elogiado por não ter mentido, e bem merecia o elogio, Deco teve de sofrer os remoques ofendidos dos patriotas lusitanos que lhe exigem que, pelo menos, «finja» que é português em nome da boa consciência do futebol nacional e da sua febre de naturalização de estrangeiros residentes e competentes.

Para se safar à crítica, o jogador brasileiro do Chelsea deveria ter produzido um arrazoado de 12 minutos sobre o seu amor à pátria do Santo Condestável, recitando os primeiros versos de Os Lusíadas, descrevendo as maravilhas naturais do torrão que lhe é querido, salientando as características de amabilidade do povo nativo e, muito principalmente, elogiando as delícias da gastronomia portuguesa, apontando a dedo os nomes de uma dúzia de pratos preferidos e de uma meia dúzia de restaurantes de Norte a Sul do país, para que todos ficassem contentes.

E, no meio disto, mas mesmo lá para o meio da conversa, o nosso Deco até podia dizer «eu não sou português» que ninguém lhe levava a mal, por entre tanta estrofe, eloquência, e bacalhau à Gomes de Sá.

O problema de Deco foi, como não podia deixar de ser, o laconismo da sua honestíssima expressão. Na noite de segunda-feira, Ulisses Morais, treinador do Paços de Ferreira, radiante pela difícil vitória da sua equipa sobre o Marítimo, produziu uma curta frase, não menos honestíssima, que resume todas as qualidades necessárias ao sucesso dentro das quatro linhas:

— Fomos cínicos e traiçoeiros!

E, consequentemente, foram felizes.

O futebol tem, neste campo, particularidades únicas. Tomam-se as qualidades por defeitos e vice-versa. E é por isso que dá panos para mangas, tal a riqueza interpretativa que suscita em Portugal.

No estrangeiro, as coisas passam-se de maneira diferente. Sobretudo nos países anglo-saxónicos, há um amor pelo preciso e pelo conciso que nos é de todo alheio.

Para obter a prova basta assistir, por cabo, a programas de debates ou a entrevistas. Ingleses e norte-americanos não demoram mais de 30 segundos a responder ao que quer que seja. E de tal modo são hábeis e qualificados nesta prática que os telespectadores, em casa, conseguem até lembrar-se da pergunta que foi feita, o que raramente acontece entre nós.

Em Inglaterra, são raros os momentos de eloquência na imprensa escrita ou na televisão. Quanto a momentos de humor, benza-os Deus, estamos conversados. Daí o espanto que não podem deixar de causar as invulgares ironia e retórica com que o cronista do conceituado jornal londrino The Times, esse pilar da velha Inglaterra, se referiu à passagem do FC Porto pelo campo do Arsenal:

— O FC Porto foi tão convidativo como adversário que mais parecia o Burnley disfarçado. Não que Fucile, pelo que mostrou, conseguisse sequer fazer um jogo pelo Burnley.

A conclusão a que se chega é que a Inglaterra já não é o que era. Quanto ao Times, perdeu toda a sua credibilidade centenária. A única pessoa que ainda leva a sério o Times é Jesualdo Ferreira. É a única explicação para a diabólica exclusão de Fucile da equipa que, depois de Londres, foi a Coimbra vencer a Académica.

Vítor Pereira anunciou publicamente que a Comissão a que preside está indecisa. Ainda não foi escolhido que árbitro vai dirigir a final da Taça da Liga. Apenas foi escolhida a cidade de proveniência do árbitro. Será do Porto, o que parece coerente. A Comissão está a pensar se será melhor ideia nomear Jorge Sousa, que recebeu a pior nota da corrente época pelo que fez e não fez no último Vitória de Setúbal-Benfica, ou nomear Paulo Costa, que está em fim de carreira e merece uma despedida condigna.

Mas que ponta final diabólica de época diabólica.

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